"o que matou as linhas secundárias foi a estranha convicção que apenas o investimento em asfalto rendia votos..."
O Movimento Cívico pela Linha do Vouga foi ao encontro daquele que considera um dos maiores entusiastas do caminho de ferro e, principalmente, da Linha do Vouga, Ricardo Grilo. Estivemos à conversa com ele e o resultado foi a entrevista que se segue, na qual Ricardo comenta a situação da via férrea, por nós defendida, isento de preconceitos e sem "papas na língua"!MCLV (Movimento Cívico pela Linha do Vouga): Viva Sr. Ricardo Grilo (RG), antes de mais gostaríamos de agradecer, em nome do MCLV, a sua disponibilidade para esta entrevista. Sabemos que o Ricardo é um grande entusiasta dos caminhos de ferro mas também do automobilismo e da aviação. É comentador na Eurosport, membro da APAC e redige artigos para revistas. Reparamos que tem um conhecimento profundo da Linha do Vouga, sendo esse o principal motivo que nos levou a querer saber mais sobre as suas opiniões. Para quem não o conhece, quem é Ricardo Grilo?
Ricardo Grilo na foto. Espinho, 1988 |
MCLV: Quando nasceu essa paixão pelos comboios?
RG: Desde que me recordo de existir que gosto muito de máquinas: aviões, carros, veículos militares e caminhos-de-ferro.
MCLV: E quando contactou pela primeira vez com a Linha do Vouga?
RG: Descobri a linha do Vouga no início dos anos 70, ainda a vapor, tendo ficado desde logo apaixonado por ela. Foi numa viagem do Porto para Lisboa que o meu pai me levou a almoçar ao restaurante do Poço de Santiago. E, mais do que o comboio a vapor, adorei ver passar a automotora a gasolina, cuja existência desconhecia. Jurei voltar, claro está. Apesar de ter 9 anos de idade.
MCLV: Lembra-se do primeiro comboio no qual viajou e em qual trajecto?
RG: A minha primeira viagem no Vouga foi em 1986, entre Aveiro e Viseu, numa Allan. Adorei!!!
MCLV: O Ricardo teve o privilégio de fazer a viagem entre Aveiro e Viseu na Linha do Vouga... Para quem nunca teve a oportunidade de a fazer, na sua opinião, o que se está a perder?
RG: Uma das mais românticas viagens de Portugal, independentemente do meio de transporte usado. A linha de via estreita, de perfil tipicamente de montanha, cortava áreas de floresta, mas também entrando por quintinhas e quintais, permitindo uma experiência sensorial absolutamente encantadora. Fiquei mesmo triste com o seu encerramento, para mim incompreensível.
RG: Com a entrada de Portugal na União Europeia, houve uma altura em que o financiamento parecia fácil e infinito. E, de facto, era necessário melhorar as infraestruturas rodoviárias. Mas também seria necessário melhorar as infraestruturas ferroviárias. E essa parte foi quase totalmente negligenciada, representando apenas uma ínfima percentagem do total.
No entanto, na minha opinião, o que matou as linhas secundárias foi a estranha convicção de que apenas o investimento em asfalto rendia votos, fruto talvez de uma geração de políticos cujos pais ainda não andavam de carro e que viam no asfalto um símbolo de progresso e nos comboios uma evocação do passado. Ou seja, sou tentado a pensar que o encerramento do troço entre Sernada e Viseu poderá ter sido mais influenciado por preconceitos que por qualquer razão técnica verdadeiramente incontornável.
Claro que havia sempre um relatório a justificar os encerramentos. Mas também era facílimo fazer cair o número de passageiros. Lembro-me que por volta de 1988 ou 1989, por exemplo, na Linha do Corgo, havia um comboio que saia de Chaves às 04h30 da manhã. Um dos 5 comboios diários circulava invariavelmente vazio, fazendo cair a média da linha para valores residuais de passageiros. Depois, a oferta deficiente e a falta de investimento em material, mas acima de tudo, na renovação das linhas, fez o resto: horários desenquadrados, poucas circulações, velocidades médias muito baixas, material demasiado velho para serviços não-turísticos, etc. Se tivessem conservado a linha, teriam agora um tesouro para explorar, eventualmente num plano alargado que envolvesse as regiões de turismo e propusesse um programa multifunções com componente ferroviária, mas também histórica (das invasões francesas à arqueologia industrial) e até termal.
MCLV: No caso concreto da Linha do Vouga, acha que os fogos, que foram um dos motivos que levaram ao encerramento deste troço, eram realmente provocados pelas locomotivas a vapor ou esta justificação tratava-se apenas uma espécie de bode expiatório?
RG: No primeiro encerramento, em 1972? Terá sido uma boa desculpa. Possivelmente até bem-intencionada. Mas, se bem me recordo, o maior incêndio de todos deu-se depois do encerramento. Depois, a revolução de Abril e a sociedade civil forçaram a reabertura. Que se prolongou - quase exclusivamente com recurso a material diesel – até ao dia 31 de Dezembro de 1989. A questão é que a CP indemnizava os agricultores que vivam perto das linhas e eram vítimas de incêndios. Segundo ouvi alguns ferroviários contarem há muitos anos atrás, mesmo depois da introdução das máquinas a vapor a fuelóleo (que praticamente não lançavam fagulhas) ou mesmo das locomotivas diesel-eléctricas (que não lançavam de todo), os agricultores continuavam a pedir compensações por incêndios alegadamente causados pelas fagulhas. Para alguns, aquilo tornou-se um modo de vida.
MCLV: Alguma vez mais a mítica ponte do Poço de Santiago irá ver um comboio?
RG: Acredito que sim. Uma nova geração de autarcas e gestores com maior sensibilidade cultural irá tomar o lugar da actual e ver o problema por outro prisma.
Numa região como a do Vouga, um monumento nacional como a ponte do Poço de Santiago ganha um valor cultural e turístico de inegável dimensão. A próxima geração compreenderá, sem esforço, que um roteiro turístico que envolva comboios clássicos (quer a vapor, quer com as raras e originais automotoras a gasolina construídas em Sernada do Vouga) num percurso entre Águeda e a dita ponte, com paragem no museu (agora isolado) de Macinhata e em Sernada, mas que também compreenda um itinerário histórico e um centro de interpretação dos combates entre as milícias locais e as colunas do Marechal Soult (que aqui foram detidas em 1809, a caminho de Lisboa), poderia começar a trazer uma outra animação para a região. A pequena barragem da Grela, construída nos anos 30, também poderia ser adicionada a esse projecto de turismo cultural de qualidade, embora aí já duvido que a linha voltasse a chegar às Termas de S.Pedro do Sul ou a Viseu. E o investimento de chegar de novo à ponte não seria de outro mundo, se as contas forem bem realizadas, eventualmente aproveitando fundos comunitários que ainda existem para este tipo de intervenções culturais e turísticas em regiões desfavorecidas...
MCLV: Como reage a todos os encerramentos de linhas que se verificaram nas últimas décadas em Portugal?
RG: Algumas das linhas tinham sido construídas para uma realidade que mudou, sem alternativas e numa época em que o caminho-de-ferro era monopolista. Depois, muitos anos de não-investimento e de falta de capacidade de compreender as ditas mudanças no mundo dos transportes ajudaram a condenar algumas delas. Outras, passaram por processos muito menos transparentes, principalmente nas vias estreitas que a CP herdou em 1946/47 e que nunca teve vocação ou vontade de as explorar.
Aí passaram-se alguns fenómenos que reputaria de muito pouco elegantes, para não empregar outra definição. Alguns deles já neste novo século.
MCLV: Concorda com a solução para muitas delas, nomeadamente pela construção de ciclovias?
RG: A solução das ciclovias representa um notável desperdício de meios para tão pouca vantagem. As bicicletas podem rodar em toda a parte. Mas os comboios não. Por outro lado, que eu saiba, não se transformam as SCUTS deficitárias em ciclovias. Há uma só vantagem que reconheço nesta moda: preserva os canais de modo a possibilitar uma futura reabertura das linhas, sem obrigar a grandes investimentos.
MCLV: O Ricardo tem algumas opiniões idênticas às das defendidas pelo MCLV... Concorda connosco quando afirmamos que a Linha do Vouga deve permanecer em formato de via estreita, sobretudo por ser a última linha deste género em Portugal (não contabilizando o Metro de Mirandela/Linha do Tua) a funcionar praticamente nas mesmas condições desde a sua inauguração? Por este simples facto, entre outros, pode considerar-se uma atracção turística?
RG: É sem dúvida uma potencial atracção turística, mas também uma base para um sistema de transporte ferroviário económico que serve uma zona densamente povoada. É um erro não aproveitar as potencialidades que a linha oferece. A questão do alargamento e rectificação é para mim uma prenda envenenada. Qual o objectivo? Comboios directos para Lisboa ou Madrid? Não faz grande sentido e o haver transbordos é a norma na via larga. Quantas vezes mudo de comboio entre Carcavelos e o Pinhão? Três ou quatro! Por isso quem for de Santa Maria da Feira ao Porto não ficará diminuído se fizer um único transbordo. É normal.
Mais ainda. No caso da linha do Vouga, o facto de ser de via estreita representa uma vantagem, pois torna-se mais versátil a nível do percurso (por exemplo, permitindo a futura exploração de canais novos por vias mistas, como se fosse um metro de superfície em Aveiro ou mesmo Espinho), além de ser tudo mais económico de adquirir, explorar e de manter.
Convenhamos a este propósito que os suíços não são pobres nem parvos e mantêm uma densa rede de via estreita modernizada e altamente eficaz, sem que alguém ponha em causa a sua validade. Quem fala em alargamentos para via larga não deve ter ido nunca à Suíça, ou sequer ao norte de Espanha, onde circulam os comboios dos FEVE.
MCLV: O assunto que marca a actualidade da Linha do Vouga é o facto de o Núcleo Museológico de Macinhata do Vouga se ter transformado numa "ilha ferroviária". Como encara este tema?
RG: Uma daquelas coisas que no mundo civilizado só poderia acontecer em Portugal. Desconheço em que estudos se terá baseado esta polémica decisão. Certamente foram sérios e rigorosos.
Mas para o leigo, dá a impressão que alguém decidiu que o museu era uma peça morta e que seria mais importante poupar uma ou duas agulhas neste projecto de renovação que manter a ligação existente do museu à rede ferroviária. E em consequência, retirar as agulhas que lá estavam, com uma argumentação que apenas funciona em teoria: ripar as linhas sempre que seja necessário colocar ou retirar material do museu é demasiado caro e apenas poderá ser usado por excepção e, segundo parece, apenas numa das duas linhas do museu. Só que o preço a pagar num horizonte mais alargado é muito elevado, pois coloca em causa todo o sonho de criar novas atracções turísticas auto-sustentáveis, de permitir um desenvolvimento baseado no que existe na região e, em consequência colocando em causa a necessidade de criar riqueza e emprego naquela zona envelhecida e sem grandes meios de fixar as populações.
Além disso falamos do último museu de via estreita que tinha ligação à rede ferroviária. Repito: era o derradeiro museu com ligação à rede. Que agora se isola para poupar uma agulha. De facto, parece-me uma decisão completamente desproporcionada. E injustificada.
MCLV: Apesar desta "aberração" que criaram no museu, considera que as obras que beneficiaram o troço entre Sernada do Vouga e Águeda foram uma mais valia para a sobrevivência da linha?
RG: Claro que sim. Foi uma obra que representou uma enorme viragem e uma notável flexibilidade de pensamento por parte de quem geriu o processo. Convém notar que a linha esteve marcada para encerramento no memorando da Troika e o governo acabou por reconhecer que seria um erro insistir nessa hipótese, recuando e investindo em obras de manutenção. E estas foram pragmáticas: nada de alargamentos, rectificações ou electrificações. Tudo foi feito com um orçamento realista que teve o dom de marcar o primeiro passo de podermos ter a prazo a desejada recuperação total do sistema do Vouga.
MCLV: Como classifica o estado em que se encontra o parque de Sernada do Vouga? Qual o futuro que perspectiva para Sernada do Vouga?
RG: É incompreensível que esteja completamente vandalizado. Os "graffitis" não são arte nenhuma. São assinaturas cuja maior ou menor disseminação dá maior importância aos membros dos gangues que os pintam. Que, segundo ouvi dizer, chegam a descer da Galiza para virem pintar as automotoras do Vouga. É que em Espanha os seguranças andam armados e as penas são pesadas.
O problema é que para estes pintores de ocasião darem azo às suas manifestações egocêntricas, sofre toda uma comunidade. O material ferroviário sujo e mal cuidado transmite desleixo e insegurança, sendo péssimo do ponto de vista de marketing. Pese embora as automotoras da série 9630 serem ainda relativamente actuais e tendo capacidade de prestar um serviço confortável por muito tempo ainda, sem grandes investimentos.
Quanto ao futuro da linha... depende de diversos factores, mas faria todo o sentido ser aproveitada no máximo das possibilidade que se possam explorar sem grandes investimentos. Haver comboios limpos, confortáveis, em horários cadenciados e sem ser demasiado lentos seria um bom começo. A possibilidade da linha continuar até ao centro de Aveiro como Metro de Superfície também não me parece descabida, podendo gerar novos serviços e passageiros. Parece-me também que em Espinho a linha tem que se reaproximar do centro, pois assim torna-se muito pouco convidativa a sua utilização. O investimento seria reduzido e o impacto da construção de um prolongamento da linha, apenas com 300 metros de comprimento, instalada num leito relvado (como no metro do Porto) seria insignificante para a cidade de Espinho (que se desenvolveu em boa parte graças à linha do Vouga) mas muito importante para um melhor aproveitamento do comboio de via estreita. Possivelmente muito mais importante que o alargamento, electrificação e rectificação da linha.
MCLV: Apesar de encerrado "temporariamente" ao tráfego de passageiros desde 2013, acredita que o troço entre Sernada do Vouga e Oliveira de Azeméis ainda pode sobreviver?
RG: Tem que sobreviver, senão compromete todo o funcionamento da linha, tornando a manutenção difícil e a gestão e rotação de material quase impossível. É insustentável em termos de custos e, acima de tudo, da imagem do produto, manter um serviço alternativo com carros de praça.
Já por algumas vezes ouvi dizer que poderia haver interesses imobiliários como peso a favor do encerramento dessa parte da linha. A ser verdade, o que não tenho por certo, parece-me um argumento que não pode ser sequer tido em consideração, num país que tem que se libertar de todo um modo anacrónico de gerir o património público sempre em favor de interesses privados. Há mais de um século que a linha é de todos os cidadãos da região e assim deverá permanecer. Ou alguém julga que daqui a 30 anos o modo rodoviário poderá continuar a resolver todos as solicitações de mobilidade de uma vila como Albergaria?
MCLV: No geral, o que deve ser feito para que a Linha do Vouga continue "viva" e atractiva, quer para as populações, quer para os visitantes?
RG: Parece simples: que possa servir correctamente as populações que a rodeiam e que saiba criar "a diferença que faz a diferença" para poder ser também a cabeça de cartaz de um produto turístico que em muito beneficiaria a região.
A este propósito, na Régua encontra-se uma composição histórica de via estreita (incluindo uma antiga carruagem do Vouga) que se encontra parada há quase 10 anos, sem linha para circular. Não ficaria maravilhosamente em Sernada do Vouga, com um programa cultural e turístico associado? Sabiam que Portugal é o único país da Europa que não possui um comboio turístico a vapor em funcionamento? Como se pode deixar fugir uma oportunidade tão exclusiva de fazer a diferença e de conquistar espaço no mercado do turismo?
MCLV: O que as câmaras municipais, por ela servida, deveriam estar a fazer pelo futuro da linha e não estão neste momento?
RG: Colaborar com a CP e com a tutela para encontrar soluções inteligentes para o desenvolvimento do transporte ferroviário (não é preciso nenhum orçamento milionário, mas sim e apenas boa vontade e trabalho) integrando tudo num projecto multidisciplinar com abrangência das áreas de transportes, turismo, cultura e lazer. Sobretudo, não comprometer as opções ferroviárias para o futuro com acções mal pensadas no presente.
MCLV: O que pensa que o MCLV pode e deve fazer para melhorar a sua luta?
RG: Tornar a divulgação dos factos o mais abrangente possível, a nível nacional e internacional. Por norma, quanto mais longe dos media e da opinião pública, mais longe fica das preocupações dos gestores e dos políticos.
MCLV: Damos assim por concluída esta extensa entrevista, agradecendo uma vez mais a disponibilidade do sr. Ricardo Grilo que nos brindou como todo o seu conhecimento e experiência. Muito obrigado e viva a Linha do Vouga!
Texto redigido por: Bruno Soares
Imagens gentilmente cedidas por: Ricardo Grilo
Movimento Cívico pela Linha do Vouga, 2015
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